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sábado, 15 de junho de 2024

Solidão

          A escrita motiva a expassão do meu Eu, é a partir da escrita que exalo as minhas compreensões de mundo, meus sentimentos e desejos, mais fiéis. É pela escrita que também expurgo dejetos ideológicos sobre a compreensão de viver. Ou seja, nem sempre a minha escrita colaborará com uma forma feliz e/ou útil de compreender o mundo, apesar da minha tentativa de vivenciar a fé. Fé nos homens e mulheres, fé nas pessoas, fé no mistico, no não explicado, ainda.

        Hoje, acordei dando de cara com a solidão. Ela é minha companheira há muito tempo. Aliás, isso não é um privilégio só meu, minha filha também a conhece, desde muito tempo. Autistas são solitários, mas não o são porque lhes faltam pessoas (na maioria, das vezes) mas, pelo sentimento de não pertencer a forma de viver nesse mundo. 

     Talvez muitas pessoas conheçam e convivam com a solidão.  A diferença é que, alguns a tornam inimiga e lutam contra a solidão, matando a si mesmo, todos os dias. Condenam a si próprio, e se tornam infelizes e/ou conquistam o rótulo de serem  tristes. Outros a procuram, cuidam com carinho e dão as mãos para a solidão, fazendo dela uma aliada para o auto-cohecimento e respeito consigo mesmo. 

      Será que solidão representa abandono? O conhecido poema de Carlos Drummond de Andrade, "José" publicado em 1942, expressa a compreensão do autor sobre a solidão, e o abandono. No poema o escritor expressa o movimento da cidade contendo as festas que findam, as luzes que se apagam, a noite que esfria, as pessoas sem nome (invisiveis), as pessoas que protestam, numa cidade que nunca perde o movimento e o ritimo. A solidão do abandono retratada pelo desamor, pelo não discurso, pela falta de carinho, pela falta de utopia. A solidão que finda ciclos, com o término da noite, com o término do riso, com o término de portas e sem finalizar, a vida. "José" esta sozinho no escuro, "qual bicho-do-mato" mas não morre e não pode fugir "sem cavalo preto".      

       A solidão é um afastar-se do mundo, e aproximar-se de si. "José", agora, precisa dar de cara consigo mesmo. Tudo a sua volta findou, mas a sua vida continua pulsando.  Ao contrário do que muitos podem pensar, compreendo que a solidão é um estado criativo, de encontro consigo mesmo e de exercício para a superação de desafios na relação com o mundo, mas também na relação conosco mesmo. Aliada da solidão, vamos gerando inúmeros companheiros em nós mesmos, como já dizia Carlos Drummond. 

      Buscando compreender a solidão através da filosofia, descobri que solidão e companhia não se opõe, incluisve podem acontecer sincronizadas e desvinculdas da dependência gerada pelo rebanho, ou seja, fora da servidão. Ou ao menos, numa tentativa de ser menos servil, buscando uma existência autêntica e por isso, necessitando o afastamento dos espiritos, ditos livres, que formam uma multidão obediente e servil. Na obra "Assim falou Zaratustra" de Nietzsche, Zaratustra não quer falar para o povo, não quer seguidores, crentes, rebanho mas, companheiros: 

"Uma luz raiou para mim: que Zaratustra não fale para o povo, mas para companheiros! Zaratustra não deve se tornar pastor e cão de um rebanho! Para atrair muitos para fora do rebanho — vim para isso. [...] Companheiros é o que busca o criador, não cadáveres, e tampouco rebanhos e crentes. Aqueles que criem juntamente com ele busca o criador, que escrevem novos valores em novas tábuas. (Za/ZA, Prólogo § 9)".   

         "Escrever novos valores em novas tábuas", pode ser um caminho solitário, mas criativo e cheio de vida. Nesse sentido, as forças que permeiam a solidão podem ser ativas ou reativas, com vontades de negação ou afirmação. Logo, por um lado a solidão pode negar a vida, odiá-la, afastar-se dela esvaziando o seu sentido. Dessa forma, a solidão é manifestada pelo isolamento, pela busca de ausencia total de instintos, supressão da vida e conceitos unificados e imutáveis, materailizando a falsa sensação de segurança e estabilidade. Por outro lado, a solidão pode ser criativa, ultrapassando as adversidades, lutando contra as culpas construidas, e se desgarrando do rebanho. Essa solidão esta longe das multidões e dá inicio ao processo de autenticidade, tem ousadia para trilhar novos caminhos e inovar com outras formas de pensar e viver a vida, questionando conceitos fixados e anti-plurais.Nessa trajetória, a solidão criativa, se alimenta de companhias salutares, que permanecem longe dos dogmas universais e da compaixão cristã. A solidão criativa é aconselhada a todos (as) que buscam ser espiritos livres e para isso, ultrapassar o dualismo entre dominar ou ser dominado. Para sair do rebanho, é necessário além de elevar-se acima da moral, mas superar o carência de servir e obter servos para si. 

          Nesse processo, não podemos temer as metamorfoses do espírito. Ainda referenciando Nietzsche, em "Assim Falava Zaratustra" é preciso vivenciar a metaformoze entre camelo, leão e criança. O camelo quer estar bem carregado, é uma "besta de carga" mas, na imersão da solidão extrema conquista a metamorfose para ser leão, onde quer ser amo do seu próprio deserto lutando contra o grande dragão e buscando o direito sagrado de dizer não! Ao se reconhecer na conquista da sua liberdade, passa a vivenciar um novo começar, e tal como uma criança, o espirito quer agora a sua vontade, "ganhar o seu mundo". 

        Enfim, ser criança e vivenciar a solidão criativa, é um grande desafio. Saber lidar com o nosso silêncio e o silêncio nas relações, com o "isolamento", com a não expressão e/ou expressões vazias, pode ser parte da metaformose necessária no caminho ao encontro de novos valores, resistências, persistências e conquistas. Nesse caminho é certo que encontraremos a solidão, mas precisamos nos perguntar, qual solidão queremos? 


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