Quando iniciei minhas escritas reflexivas era necessário um tempo vago, um ambiente considerado adequado, silêncio, um computador e livros. Mas, tantas exigências pausaram momentos prazerosos de escrita e registros sobre as marcas conquistadas no caminho da vida. Agora, com celular nas mãos, dedos ativos, comprometidos com a mente disponível para a reflexão, me trazem novamente, a oportunidade da escrita pelo prazer.Vinda da periferia, e tendo na minha constituição familiar e histórica, mulheres que viveram no campo marcadas pela violência doméstica e social, cresci questionando as relações sociais. Filha da pobreza, e mais uma tentando o acesso ao ensino superior, foi só quando trabalhando no comércio, pude pagar a mensalidade num curso de universidade privada e que tive oportunidade de conhecer autores clássicos, da politica social. Com um cabedal acadêmico admiravél descriviam a pobreza e muitos, denunciavam a invisibilidade humana através de dados e análises.
Parecia que agora teria a oportunidade de compreender aquela avalanche de informações que somavam na minha memória. Desde as histórias de fome da minha família até, as violências sofridas pelas mulheres que admirava, e que cuidaram da minha constituição até a vida adulta. "Debulhei" folhas e folhas de livros. Queria respostas para todas as amarguras do mundo. Queria explicar o choro recorrente das mulheres da minha família, queria entender porque pessoas idosas ainda tinham que catar lixo para sobreviver, enfim, queria enteder porque todos os amigos que tive, na maioria das vezes, entraram para o mundo do crime.
O tempo passou, e percebi que acumulei livros rabiscados, muitos marcados com pontos de exclamação e/ou ponto de interrogação. As leituras, e todos os livros e aulas, ainda não tinham proporcionado a compreenssão/conformação sobre as manifestações da questão social. Entendi que não bastava ler sobre pobreza, não bastavam as palestras ministradas, não bastavam os discursos fervorosos. Mas, a inquietação continuava. A sala de aula virou os encontros do movimento estudantil, mais tarde os encontros do movimento sindical e mais tarde ainda, o trabalho em comunidade. Entretanto, agora estava aparentemente sozinha e tudo continuava muito parecido com tudo que vivi e havia lido sobre pobreza.
Agora, sem tantos momentos de leitura mas, com muitos períodos de trabalho em comunidade, várias reflexões e incômodos. O tempo havia passado mas, eu continuava a mesma. Sentia-me ainda, uma estudante. Esperança, indignação e resiliência me constituiam. O choro era presente, após um dia intenso de trabalho. Um sentimento de indignação, fúria com o mundo e tristeza provocaram, durante alguns meses, choros reincidentes durante o banho. Naquele período, aprendi que o banho também lava a alma e limpa angústias. Apesar da inconformação, sabia que havia realizado tudo que estava ao meu alcance, para cada ser humano que tive oportunidade de acolher.
Longos anos de trabalho em comunidade, permitiram que eu pudesse acompanhar as mais diferentes invisibilidades humanas. Acompanhar mas, nem sempre compreender. Sabia que a dor que sentia me aproximava daquela realidade, por isso, até hoje peço cantando "Que el dolor no me sea indiferente", pois é a forma de lembrar de onde vim. Hoje sei, que minhas memórias são marcadas pela dor alheia porque não fui indiferente. Aprendi o conceito de dor social, registrada no cérebro de forma similar à dor física (Aronson, 2023). Talvez seja essa dor social, sentida por tantos, que (re) produz todas as formas de violência.
Agora, além dos livros, o cotidiano do trabalho em comunidade me ensinava que a indiferença e a invisibilidade se retroalimentavam. A indiferença marcada pela falta de interesse dos governos para o investimento em políticas sociais públicas, que contribuissem na redistribuição de renda e equidade, e falta de cuidado com a constituição da dignidade humana. Essa por sua vez, apesar de descrita na nossa Constituição Federal, ainda é "letra morta". Segregação e desigualdade, eram percebidas de diferentes formas marcando o cotidiano da invisibilidade social de mulheres, meninas, idosos e "gentes de toda cor e sorte". Contemporaneamente, após quase vinte anos de trabalho em comunidade, o cotidiano ainda me atravessa gritando o acirramento das desigualdades e a necessária continuidade do esperançar! Entretanto, descobri que para esperançar precismos ir além de chorar, além das narrativas, precisa se sentir vivo (a)! Sentir-se chacoalhado (a) pela indiferença e invisibilidade, precisa confiar na relação entre as pessoas que contrõem o mundo, todos os dias. Precisa desnaturalizar o mecanicismo do cotidiano. Necessita, parafraseando nosso Mestre Paulo Freire: levantar, ir atrás, construir, não desistir, levar adiante, juntar-se com outros para fazer, o mundo e as relações, de outro modo. Necessita que a dor não nos seja indiferente, que a morte não nos encontre sem termos feito o suficiente e que todas as angústias sobre o futuro da nossa humanidade, não nos seja indiferente (Mercedes Sosa).Necessita colorir o cotidiano, colorir as relações, colorir o modo de construir o cotidiano e o mundo!